Por um elementar respeito pela linguagem, sobre o qual se fundamenta a possibilidade de comunicação inteligente, a humanidade tem costumado chamar pão ao pão e vinho ao vinho, e matrimônio à união conjugal de um homem e uma mulher. Também é verdade que sempre existiram Quixotes que chamaram gigantes aos moinhos, castelos às estalagens e castas donzelas às moçoilas de aldeia.
Hoje, uma moderna escola quixotesca, conhecida como ideologia de gênero, empenha-se em chamar matrimônio a outras ligações, contradizendo a evidência mais irrefutável; dizem que essas combinações poderiam gerar filhos se fosse possível fecundá-las, mas que a biologia lhes nega essa possibilidade. A obsessão da ideologia do gênero é talvez o último cartucho da luta de classes marxista, disparado pelo lobby cor-de-rosa.
A citada escola quer fazer-nos acreditar que o matrimônio é pura convenção, regulada pelo Direito para dar um verniz de honorabilidade às relações sexuais estáveis entre adultos de diferentes sexos. Mas a verdade é que, em todos os tempos e em todos os lugares – desde os homens da caverna de Altamira até o século XXI -, se protegeu essa união por estar diretamente associada à origem da vida e à sobrevivência da espécie, por ser a instituição que nos traz mais riqueza humana, laços de solidariedade e qualidade de vida.
A introdução artificial – por reprodução assistida ou adoção – de uma criança na casa de duas pessoas do mesmo sexo não converte essas pessoas em casadas nem os três em família. Dois homens podem ser bons pais, mas nunca serão uma mãe, nem boa nem má; duas mulheres podem ser duas boas mães, mas nunca serão um pai, nem bom nem mau. “Não desejo a nenhuma criança o que não desejei para mim mesma”, diz a psicóloga Alejandra Vallejo-Nágera: “Gosto, sempre gostei, de ter um pai e uma mãe. Qualquer outra combinação de progenitores parece-me incompleta e imperfeita”.
Mais do que um tema jurídico ou religioso, mais do que uma questão de tolerância ou liberdade, mais do que um assunto progressista ou retrógrado, estamos diante de um problema basicamente biológico. Pode-se opinar o que se queira, mas o que opinemos é irrelevante quando é a biologia que tem a última palavra.
Apesar disso, a ideologia de gênero – tão amiga da quadratura do círculo – diz-nos que a sexualidade masculina e feminina é opcional, não determinada pela condição biológica do homem e da mulher. Por isso, ao atribuir à liberdade um poder que não tem, ao confrontá-la tão violentamente com a biologia, torna inevitáveis sérios conflitos legais, morais e psicológicos, dos quais não se livram as possíveis crianças adotadas.
A Associação Mundial de Psiquiatria sublinhou que uma criança “paternizada” por um casal de homens entrará necessariamente em conflito com as outras crianças, comportar-se-á psicologicamente como uma criança em luta constante com o seu ambiente e com os outros, incubará frustração e agressividade.
Que caminho percorreu o feminismo até chegar à ideologia de gênero? A pretensão do primeiro feminismo – nos tempos da Revolução Francesa – foi legítima e positiva: a equiparação de direitos entre homem e mulher. Mas aos direitos seguiram-se as funções, e o feminismo começou a exigir a eliminação da tradicional distribuição de papéis, considerada como um arbítrio. Assim se chegou a rejeitar a maternidade, o casamento e a família.
Encontramos na base desta nova pretensão as idéias de Simone de Beauvoir, publicadas em 1949 no seu revolucionário “O segundo sexo”. Beauvoir previne contra a “trapaça da maternidade”, anima a mulher a libertar-se dos “grilhões da sua natureza” e recomenda que se passe a educação dos filhos para a sociedade, que se fomentem as relações lésbicas e a prática do aborto.
Hoje, os promotores do feminismo radical de gênero lutam pelo triunfo de novos modelos de família, educação e relações, em que o masculino e o feminimo estejam abertos a todas as opções possíveis. Nos livros de texto de alguns países sobre a disciplina “Educação para a Cidadania”, não se fala em nenhum caso da verdade, nem do bem, nem da consciência; em pouquíssimas ocasiões se fala da família e dos pais. Em contrapartida, reinvidica-se em dezenas de lugares a liberdade de orientação afetivo-sexual.
EDUCADO PARA SER MULHER
A ideologia de gênero é o passo mais radical do feminismo radical, pois pretende eliminar as diferenças naturais e interpretar com base na cultura, não na biologia, a condição sexuada do homem e da mulher. Cada qual pode fazer do seu corpo o que quiser já que o corpo é meu, ou – dito com um toque de elegância – my body is my art.
Tempos atrás, a imprensa internacional noticiou o fracasso de uma vergonhosa experiência médica. O psiquiatra americano John Money (1921-2006) tinha pretendido demonstrar – já a partir da década de sessenta – a teoria de que a sexualidade depende mais da educação do que dos genes. As suas cobaias foram dois bebês gêmeos: Bruce e Brian Reimer. Em 1965, um infeliz acidente com Bruce proporcionou a Money a oportunidade de transformar o corpo do bebê – por cirurgia plástica e com o consentimento dos pais – num corpo com aparência feminina (N.E. uma circuncisão mal-feita deixou Bruce, então com 8 meses de idade, sem um pênis, e na cirurgia seus testículos foram removidos). Money disse aos pais que deviam criar o bebê como se fosse uma menina e manter o episódio em absoluto segredo. Assim, Bruce passou a chamar-se Brenda.
As condições da experiência eram perfeitas, pois tinha-se realizado sobre um recém-nascido que possuía o mesmo quadro genético do irmão gêmeo. O médico – que se fazia chamar missionário do sexo e era defensor infatigável dos matrimônios abertos e do sexo bissexual em grupo – confiava cegamente em que o gêmeo operado poderia ser educado como uma menina. No eterno debate sobre natureza e educação, ia demonstrar que a educação é tudo. Simone de Beauvoir e Sartre já tinham feito triunfar a ideia de que é o ser humano quem goza de liberdade, não a natureza.
Os Reimer seguiram ao pé da letra as instruções de Money, mas as coisas não correram conforme o previsto. Janet, a mãe, conta o que aconteceu quando tentou vestir Brenda com o seu primeiro vestido, pouco antes de fazer dois anos: “Tentou arrancá-lo, rasgá-lo. Lembro-me de que pensei: <
Enquanto toda a família via aflita o fracasso da operação, Money proclamava aos quatro ventos que a sua experiência era um êxito rotundo. Num artigo publicado em Archives of Sexual Behaviour, escreveu: “O comportamento da menina é claramente o de uma menina ativa, bem diferente das formas masculinas do seu irmão gêmeo”. Ao mesmo tempo, a revista Time afirmava que “este caso constitui um apoio férreo à maior das batalhas pela libertação da mulher: o conceito de que as pautas convencionais sobre a conduta masculina e feminina podem ser alteradas”.
Nesse interim, os gêmeos eram obrigados a seguir uma terapia com Money, que o fazia ver imagens sexuais e despir-se, em sessões que degeneraram e os traumatizaram profundamente. Quando Brenda tinha quinze anos, destruída pelas intermináveis sessões psiquiátricas e pela medicação com estrogênio, tentou suicidar-se. Seu pai contou-lhe então a verdade e ela decidiu voltar a ser um rapaz e chamar-se David. A cirurgia plástica fez o que pôde.
Em 2002, o irmão gêmeo, que sofria de esquizofrenia, suicidou-se. David nunca pôde superar o seu trauma e matou-se em 2004. “Daria qualquer coisa para que um hipnotizador conseguisse apagar todas as recordações do meu passado. É uma tortura que não suporto. O que fizeram com o meu corpo não é tão grave como o que provocaram na minha mente”, tinha dito.
A FAMÍLIA E OS SIMPSONS
Em estreita relação com a ideologia de gênero e o feminismo radical, um dos mitos mais arraigados é o que apresenta as rupturas conjugais como uma conquista da liberdade, como uma solução rápida para os inevitáveis problemas do casal e como o ansiado caminho para essa felicidade que não acaba de chegar.
Quem desempenhou um papel primordial na aceitação ingênua e generalizada desse mito foi Hollywood. A maior indústria de entretenimento do planeta contribuiu francamente para isso, e é muito difícil encontrar famoso ou famosa que não se tenha divorciado e recasado – frequentemente várias vezes – nos seus filmes e na sua ventilada vida real.
Mas o vírus não contaminou toda a gente. Na modela vila de Springfield vive uma família desmitificadora e antissistema, e talvez por isso imune ao divórcio. Uma família composta por um bebê, uma menina repelente e encantadora, um rapazinho criador de casos, um pai vadio e beberrão e uma mãe coroada por um penteado azul e da altura de uma torre de Pisa.
Há quem diga que a família Simpson, além de extravagante, é corrosiva e pouco recomendável. Os psicólogos chamam-na disfuncional. Um desastre, diriam as nossas avós. Tudo isso é verdade, mas gostaria de ressaltar uma coisa a que ninguém aludiu: essa família luta solitariamente contra o maior império do cinema. Porque Hollywood teria passado o rolo compressor divorcista sobre o terceiro episódio do seriado, mas, longe de Hollywood, livre dos seus mitos, os Simpsons vêm demonstrando há mais de quatrocentos capítulos que a família é o maior investimento a longo prazo, a autêntica tábua de salvação num mundo mentiroso e à deriva.
Ninguém negará que Marte tem motivos para romper com o seu marido preguiçoso e alcoólico, um campeão do arroto e da flatulência. No entanto, essa dona de casa, tão correta e afável, tem outros motivos, muito diferentes e muito mais poderosos: o respeito pelo compromisso com Homer e os seus três filhos, o seu senso comum, o seu sentido religioso e o seu carinho sincero.
Um senso comum que nos recorda o Chesterton que, na meninice, ouviu dizer que nos Estados Unidos era possível obter o divórcio por incompatibilidade de gênios:
“Pensei que era uma piada. Agora descobri que é verdade, e parece-me mais que uma piada. Se os casados podem divorciar-se por incompatibilidade de gênios, não entendo por que não se divorciaram todos. Pela própria definição do sexo, qualquer homem e qualquer mulher têm modos de ser incompatíveis. E é precisamente por isso que se casam...
“Mais ainda, é daí que procede o aspecto mais divertido desse compromisso. Ninguém se enamora de uma pessoa compatível. Estou preparado para apostar que nunca houve um casal que demorasse mais de uma semana a descobrir a recíproca incompatibilidade de temperamentos, e que uma boa e sólida incompatibilidade é garantia de estabilidade e felicidade”.
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Fonte: Livro “Mitologias modernas”, de José Ramón Ayllón, Quadrante, São Paulo, 2011
Recomendo fortemente esse livro.
mila
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